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Primeiro capítulo
Ouvir estrelas
Por volta nove da noite e eu estava no quintal de nossa casa. Fazia muito calor nessa noite de dezembro. Saí silenciosamente da sala buscando a brisa que vinha dos lados da praia. Em Fortaleza, os ventos alísios que sopram sempre vindos do mar aliviam o forte calor da cidade
Estava bem escuro, a luz da rua era fraca e amarela. Olhei para o céu e vi por entre as imensas folhas de bananeira, a lua minguante, muito lisa e branca. Erguendo mais o rosto, o que me encheu de um espanto quase absoluto, foi o céu daquela noite. Tão pesado de estrelas que parecia que ia cair na minha cabeça.
Poucos minutos depois, senti o toque de uma mão em meu braço e já sabia que era ele. Meu irmão andava com os braços estendidos para a frente. Suas mãos sempre chegavam primeiro do que ele. Quando encostou em mim, bateu de novo em meu braço, impaciente, pois percebeu que eu não lhe dera atenção de imediato.
-- Ei, o que você está fazendo?
-- Olhando o céu e as estrelas.
-- O céu? As estrelas? Ah, e como é isso?
Absorvo a pergunta e fico muda por alguns segundos. Não parei de olhar o céu, o pescoço inteiro virado para cima. Tenho sete anos nessa época e sou uma menina pequena, delicada. Meu irmão tem cinco. É magro, rijo, com mãos fortes.
Viro meu rosto para ele e enxergo por entre as sombras seus traços equilibrados, nariz pontudo e boca bem definida. Seus olhos, entretanto, são quase inexistentes. No lugar deles, veem-se duas pregas de pele unidas, pálpebras cerradas sobre os globos oculares que ficam no fundo da cavidade. As pálpebras formam uma cicatriz horizontal, com os cílios superiores e inferiores que se juntam, como se costurados, colados. É bem esquisito. Mais tarde, ele irá suar óculos escuros para ocultar os olhos, coisa que sempre me deu o que pensar. Óculos escuros são para ocultar a luz. E se ele não enxerga luz nenhuma, por que esconder sua cegueira sob lentes de escuridão?
-- Fala aí, mana, como é isso, um céu com estrelas?
Fico pensando um pouco. Não acho as palavras para descrever essa concretude, essa magnitude ou essa simplicidade, sei lá. A imensidão do que vejo é igual a minha incapacidade de descrever para meu irmão o que enxergo.
Como descrever uma escuridão pontuada de luzes? Um pano escuro coalhado de pontos de luz?
Desde muito pequena, sinto-me responsável pelas descrições do mundo para meu irmão que é cego. E pela fidelidade dessas descrições. Observo muito como meu pai faz nas conversas com ele. As palavras certeiras, cheias de conteúdo e de sentidos. Eu não posso mentir, não posso enganar, não posso me descuidar. A segurança dele depende de minhas palavras, minha descrições. Não pode haver promessas ou incertezas.
Agora, para explicar esse céu noturno... Não, não tenho palavras. Penso e repenso e a imensidão do universo é tão grande como a minha incapacidade de descrever pra ele o que enxergo. Nem eu mesma sei o que é aquilo, até onde vai, de onde vem. Como descrever uma escuridão pontuada de luzes? De que ponto a que ponto falar? Das constelações, dos grupos de estrelas faiscantes, das solitárias luzes dos planetas, da riqueza incomparável de um céu escuro coalhado de pontos que instiga minha imaginação, minha curiosidade mais profunda, mais humana? Que atiça sentimentos de desamparo e ao mesmo tempo de esperança? Que ultrapassa limites do conhecimento, ainda mais dos parcos saberes de uma menina na Fortaleza do início dos anos 1960.
Mas eu tenho que descrever, tenho que falar alguma coisa pra ele sobre aquilo. Não falar nada ou mentir, um “ah, é como uma caixinha com um monte de coisas dentro”, não cabe na minha cabeça de irmã mais velha, uma das pessoas responsável pela fidelidade das descrições do mundo para meu irmão cego. Eu, que sempre observava como meu pai fazia, se esmerando em descrições ricas e sensíveis de algum fenômeno. Eu que não podia nunca mentir, enganar ou brincar com coisa alguma que comprometesse uma apreensão do mundo pelo meu irmão. Eu que não podia comprometê-lo nunca com o perigo, com um degrau, com o oco do mundo.
Agora eu tinha que descrever pra ele exatamente isso, o oco do mundo, mas polvilhado de luzes. Isso me confundia muito… (…)